No motorsport moderno, a telemetria e a aquisição de dados deixaram de ser um diferencial e se tornaram uma necessidade.
Essa dupla de ferramentas permite transformar cada volta de pista em informações objetivas para tomada de decisão — seja na busca pelo acerto ideal, na evolução do piloto ou na definição de estratégias de corrida.
Para quem está começando, interpretar um canal de telemetria pode parecer intimidador. Afinal, são gráficos com múltiplas linhas que precisam se transformar em respostas concretas.
Neste artigo, vamos explorar os principais canais, explicar como fazer uma leitura eficiente e mostrar como cruzar informações para obter insights valiosos.
1. Por Que a Telemetria é Essencial no Motorsport?
Antes de falar sobre interpretação, é importante entender o porquê dessa ferramenta ser tão valorizada. A telemetria e a aquisição de dados cumprem dois papéis fundamentais:
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Transformar sensações em números
O que o piloto sente ao volante muitas vezes é subjetivo. Com dados, conseguimos confirmar (ou refutar) essas percepções. -
Gerar base comparativa
É possível analisar voltas diferentes, comparar pilotos ou setups e identificar onde estão os ganhos e perdas.
Em categorias de ponta no Brasil — como Stock Car SNG (a partir de 2025), GT3 e protótipos da Endurance Brasil — a telemetria embarcada é uma aliada constante. Em outras, mesmo sem telemetria em tempo real, a aquisição de dados via logger já oferece material suficiente para análises de alto nível.
Exemplo real: Um piloto relata que o carro “escapa de frente” em uma curva de alta. Com telemetria e/ou análise de dados, podemos verificar o ângulo de volante, a posição do acelerador e dos amortecedores, as pressões e temperaturas dos pneus, entre outros parâmetros para entender se é realmente subesterço ou outro fator.
2. Principais Canais e Como Interpretá-los
Para interpretar a telemetria de forma eficiente, é preciso entender o papel de cada canal e o que ele revela sobre o carro e o piloto.
Velocidade (Speed)
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O que mostra: Ganho e perda de velocidade ao longo do circuito.
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O que observar: Picos máximos em retas, velocidade mínima nas curvas e transições entre aceleração e frenagem.
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Aplicação: Identificar curvas onde o piloto mantém mais velocidade, sem perder na saída, ou onde perde tempo por excesso de cautela.
O canal de velocidade mostra como o carro acelera e desacelera ao longo da pista. Um gráfico suave, com picos e vales bem definidos, costuma indicar um piloto consistente. Já quedas abruptas e retomadas lentas podem apontar erros de pilotagem ou problemas mecânicos.
Na imagem abaixo é possível ver picos bem definidos da transição de acelerador para freio (velocidade máxima antes da frenagem), e o oposto também (saída da curva). Cada pico indica o final de uma reta, assim como cada vale indica uma curva.

Dica prática:
Se a velocidade mínima de curva é menor que a do piloto referência, é sinal de que a entrada está conservadora e/ou a frenagem foi muito prolongada. Caso você saiba que o seu piloto realmente estava no limite, a menor velocidade indicará uma redução da aderência, seja por vida de pneu ou condições na pista.
Posição do Acelerador (Throttle)
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O que mostra: Quanto o piloto está solicitando a potência no carro.
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O que observar: Aplicações progressivas indicam controle ou insegurança.
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Aplicação: Avaliar saídas de curva, detectar progressividade e movimentos decrescentes.
Esse canal mostra como o piloto está aplicando potência ao carro. Um gráfico que mostra aceleração gradual é desejável em curvas de baixa aderência e/ou em veículos com muita potência. Se o gráfico for “liga/desliga” pode indicar que o piloto demorou muito para acelerar e com isso pode pisar de uma vez ou que o carro tem muita aderência para a potência, fazendo com que não seja necessário modular o pedal na saída de curva.

Erro comum:
Pilotos iniciantes costumam acelerar muito cedo ou muito abruptamente, provocando perda de tração, com isso eles são obrigados a voltar a posição do pedal. O pedal de acelerador nunca poderá ser decrescente na saída de curva. No máximo ele pode ser constante por um curto período.
Pressão de Freio (Brake)
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O que mostra: Intensidade e tempo de frenagem.
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O que observar: Frenagens consistentes indicam confiança; picos instáveis podem significar travamento ou insegurança.
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Aplicação: Encontrar pontos de frenagem ideais, analisar modulação e eficiência na desaceleração.
Permite analisar onde o piloto começa a frear, a intensidade da frenagem e se há modulação ou travamento. Um bom uso do freio aparece como uma curva descendente suave e consistente.

Volante (Steering)
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O que mostra: Ângulo e correções de direção.
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O que observar: Movimentos suaves indicam traçado limpo; correções frequentes sugerem instabilidade ou erros de pilotagem.
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Aplicação: Detectar subesterço, sobreesterço ou traçados inconsistentes..

Cruzamento com outros canais:
Se o volante está próximo ao vaor máximo daquela curva e o pedal do acelerador é crescente ou esta próximo ao valor máximo, o carro esta subesterçando (Understeer). Agora se há correções do volante, as vezes chegando a virar para o lado oposto da curva, junto a alívio do pedal de acelerador, o carro está muito sobre esterçante (Oversteer).
3. Leitura Integrada: O Verdadeiro Poder da Análise de Dados
Olhar canais isolados ajuda, mas o ganho real vem da análise integrada.
Ao sobrepor velocidade, freio e acelerador, por exemplo, conseguimos:
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Detectar se o piloto está soltando o freio tarde demais e prejudicando a rotação do carro
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Verificar se a retomada de aceleração é prejudicada por instabilidade de traseira
Exercício:
Tente sobrepor os canais de velocidade, freio e volante de duas voltas diferentes. Você verá como pequenas variações impactam no tempo total.
4. Ferramentas Gratuitas e Profissionais para Análise
Você não precisa de um pacote completo de F1 para começar. Existem desde opções gratuitas até softwares de altíssimo nível:
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AIM Race Studio – Gratuito e popular, ótimo para iniciantes. É o software mais utilizado em Karts, motocicletas e track days
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MoTeC i2 – Usado em diversos veículos pela facilidade de aquisição e configuração do hardware. Atualmente é utilizado no Stock Car SNG e em alguns carros Endurance Brasil.
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Pi Toolbox (Cosworth) – Padrão no Porsche 911 GT3 Cup/R e antigo sistema da Stock Car até 2024.
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Bosch WinDarab – Usado na maioria dos GT3 modernos (exceto Porsche).
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WinTax (Magneti Marelli) – Utilizado na F4 Brasil e protótipos Ligier da Endurance Brasil.
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Simuladores (iRacing, Assetto Corsa) – Permitem exportar para o Motec i2. No futuro, o iRacing utilizará o Pi Toolbox como ferramenta oficial para análise de dados.
5. Erros Comuns ao Interpretar Telemetria
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Focar apenas no tempo de volta total – É o delta por setor que revela onde o ganho é possível.
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Analisar dados de diferentes condições como se fossem iguais – Combustível, pneus e temperatura precisam estar padronizados.
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Ignorar o feedback do piloto – Dados mostram o que aconteceu; o piloto explica o porquê.
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Olhar demais para um canal isolado – Sempre cruze informações para confirmar hipóteses.
Conclusão
Interpretar a telemetria é mais do que “ler gráficos”. É compreender como carro e piloto interagem e traduzir isso em ações concretas. Ao dominar essa habilidade, você deixa de depender apenas da percepção subjetiva e passa a trabalhar com informações objetivas, capazes de transformar performance.
Seja você iniciante ou profissional, a chave é praticar a leitura cruzada e buscar padrões para realizar análises cada vez mais precisas e rápidas.
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